Cansado, estica-se em uma banqueta rente à cama em que o fardo
físico descansava. Daí a pouco, observa uma estrela em formação na penumbra do
quarto. Assusta-se e cai de joelhos, rezando sem cessar, esforçando-se para
voltar ao corpo, sem o conseguir. A estrela, em estado crescente, avoluma-se,
tomando forma de homem todo inundado de luz. O papa, tomando João por Cristo,
beija o tapete chorando e pede sua proteção; sente que está na graça de Deus
pela presença do Cristo no "Lar de Pedro". Quer beijar, pelo menos,
as orlas das vestes celestiais, todavia, o Apóstolo do Amor não o consente, dizendo
mansamente:
- Levanta-te! Também eu sou da Terra e vim ao teu encontro para
que possas estender um pouco de paz à grande área da guerra que já lançaste.
Não sou Jesus, mas enviado por Ele.
João Evangelista pairava ainda no ar e o Pontífice guerreiro
recostou-se na banqueta de cedro do Líbano, para ouvir a mensagem do Mundo
Maior, através da personificação do Amor na Terra.
Urbano, em espírito, chorando sem parar, enquanto o corpo
estremecia nas luxuosas mantas de pelos de camelo, trava com João o seguinte
diálogo:
- Mestre, vieste confirmar que sou teu discípulo, pelo que tenho
feito em defesa do patrimônio da tua Igreja?
- Viemos verificar se ainda lhe resta no coração algum amor pela
humanidade.
- Será que apareceste nesta memorável noite, para entregar ao teu
único representante na Terra, os poderes indispensáveis para a tomada de
Jerusalém, onde tudo nos pertence, por herança dos teus valores?
- Viemos para que os encarregados da Boa Nova do Reino se
compadeçam dos sofredores, vistam os nus e dêem pão aos famintos. Se praticares
os preceitos do Evangelho, terás muito mais do que Jerusalém, porque as
virtudes concentradas no coração valem mais que o mundo inteiro.
Urbano II não sabia como portar-se diante do emissário de Jesus,
estando sua mente completamente desequilibrada e o raciocínio parecendo que
nunca funcionara. Seus atos eram como uma máquina, a seguir enfumaçados
estatutos, velhas leis e ideias dos altos representantes da Igreja, que a razão
recusaria. Com algum esforço, levantou-se diante de João Evangelista, limpou a
velha garganta, acostumada a reproduzir as ameaças das sombras, prosseguindo:
- Digníssimo Senhor, perdoa-me se o ofendo com o que proponho, mas
bem sabes que satanás está solto no mundo, com todo o seu rebanho de trevas,
bem como não ignoras os destroços feitos por eles, mesmo no seio da Igreja de
Deus, que nos foi entregue para o devido zelo. E, se ele abriu luta contra nós,
temos de defender, não a nós, mas a Casa do Senhor que, parece-nos, está sendo
invadida por malfeitores. Se não estivermos enganados, o diabo, sob a chefia de
Maomé, atua através dos turcos, pela força de sua religião. A sutileza deles é
tão grande, que intentam derrubar a nossa Santa Madre Igreja, através do túmulo
do Senhor, em Jerusalém, É preciso então, ainda que contra a nossa vontade, que
desembainhemos a nossa santa espada, e liquidemos o inimigo, porque violência
só se combate com violência. Que achas do que falo?
Meio aturdido, torna a sentar-se preguiçosamente na suntuosa
banqueta. O vidente de Pátmos, diante do Sumo Pontífice, com a serenidade que
lhe era peculiar, fala brandamente, mesclando energia no seu verbo encantador:
- Urbano, meu filho! Não pretendemos fazer da Casa de Oração que
Jesus inspira, um quartel. Não pretendemos transformar os fiéis, que alimentam
as vidas com esperança e fé, em milicianos que usam da espada para matar. Não
pretendemos usar o nosso verbo sagrado preparado para a difusão do Evangelho, para
o comando de exércitos. A própria Igreja que diriges está farta de bens
alheios, dos quais a vitória concede ao vencedor o direito do saque e da
rapina. E para esse tipo de faltas nada iremos falar; deixemos que o faça o
nosso irmão maior, Paulo de Tarso, em
Atos dos Apóstolos, capítulo vinte, versículo trinta e três:
De ninguém cobiceis prata, nem ouro, nem veste.
Se cobiçar já constitui desvio da lei, quanto mais assaltar e
saquear!... Se Satanás está solto no mundo e avança na direção da Igreja e dos
fieis, qual o dever tua autoridade? Será copiar o que eles fazem, em plena
inconsciência da vida? Não! Somente vencerás os inimigos com estratégia mais
elevada, e para essas lutas, Cristo, o Comandante Maior, deu numerosos
exemplos, quando a Sua doutrina atacada e quando Ele mesmo foi perseguido. Se
tua memória não te favorece, recordemos o que Ele próprio falou a Pedro, frente
ao servo do Sumo Sacerdote:
Embainha a tua espada, pois todos que lançam mão da espada sob a
espada perecerão.
(Mateus, 26:52)
E ainda, apanha a orelha decepada, e a coloca no lugar. Esse gesto
não é a completa desaprovação da violência nas hostes do cristianismo?
Se o Cristo fosse de
violência, não precisaria d'Ele o mundo, pois ela já se encontra com abundância
em toda a Terra. Ele é o Amor universal, pois essa virtude é qual gema preciosa
nos riachos, em se falando da Terra. Defende a tua Igreja e o teu reino com
amor, meu irmão. Defende-a de satanás - como dizes - com a caridade. Defende-te
dos inimigos, se os tiveres, com o perdão. Cultiva todos os preceitos do Divino
Mestre, que a vitória virá por acréscimo de misericórdia, e se Deus achar
conveniente que os violentos fiquem com os bens terrenos, entrega-os com
alegria e obediência, que os valores maiores são aqueles que a ferrugem não
destrói, nem a traça corrói. O sentimento elevado do coração é patrimônio
eterno, na eternidade da alma. Além de tudo isso,
estás próximo a voltar para esta pátria, e é conveniente que te lembres do
capítulo doze, versículo vinte, de Lucas, que assim preceitua:
Mas Deus lhe disse: Louco! Esta noite te pedirão a alma. E o que
tens preparado, para quem será?
E no versículo vinte e um do mesmo capítulo, arremata com
sabedoria:
Assim é o que entesoura para si mesmo, e não é rico para com Deus.
Para quem, meu filho,
amontoaste tanta riqueza? Logo virás para cá, e nem mesmo o teu corpo de lama
poderás trazer. Entregá-lo-á à terra, porque da terra ele procede. Ele é um empréstimo
passageiro. Sabe o que te acompanhará para cá? Somente o bem ou o mal que
tiveres feito, e receberás nas mesmas proporções que deste aos outros.
O sacerdote, com a boca semiaberta, mastigava o alimento divino,
sem contudo sentir seu elevado sabor. João Evangelista dá tempo para que a
massa doutrinária possa fermentar.
E o silêncio reina no ambiente!... Nisto, o chefe do cristianismo
lembra-se de algo do Evangelho, e comenta meio inseguro:
- Amado Senhor,
falaste que não vieste trazer a paz, mas a espada! Não sei como encontrar isso
no Evangelho, mas sei que existe.
Pareceu bem seguro
nessa investida, para confirmar seus atos trevosos na Terra. João perpassa nele
os olhos calmos, como se estivesse abençoando uma criança, e assim dispõe suas
ideias:
- O que acabas de
dizer, meu filho, está em Mateus, capítulo dez, versículo trinta e quatro,
assim transcrito nos moldes modernos:
Não penseis que vim
trazer paz à Terra. Não vim trazer paz, mas espada.
Sei que não
desconheceis os pais da Igreja, que suspenderam as colunas teológicas do apostolado
romano, como Santo Agostinho, bispo de Hipona, nascido no século IV da era cristã,
teólogo, filósofo, moralista e dialético. Homem que, àquela época, já sabia
colocar em conexão, a inteligência e a fé. Ele repetiu muitas vezes qual era a
espada que Jesus veio trazer para a luta no mundo, chegando ao ponto de ser
colocado à margem dos valores reais da Igreja. E desconheces isso? Jesus veio
trazer sim, a espada, mas a espada de Verdade, que corta mais de que todas as
outras; a espada do Perdão, que vence mais que todas as armas; Veio trazer a
espada do Amor, que domina muito mais do que os exércitos reunidos de todos os
povos.
Urbano II abaixa a cabeça e não tem coragem de olhar mais para a
cândida alma que dialoga com ele e que supunha ser o Cristo. Era consciente do
que ouvira, pois tinha amplos conhecimentos dos tratados teológicos. Recomeça a
chorar, reconhecendo sua inutilidade. Na verdade, com as Cruzadas ateara fogo
nos lares cristãos, mas como apagar? E as labaredas cresciam como nunca...
Queria morrer!...
- Eu quero morrer! Eu quero morrer! Sinto que Deus me chama... e
debruça na banqueta, em pranto contínuo.
O Mestre de Éfeso articula docemente:
- Urbano, Deus te chama, na verdade, porém, te chama para viver,
te chama para que faças alguma coisa, que possa aliviar os sofrimentos humanos,
a fome, a peste, a nudez, os infortúnios
ocultos, que devastam grande parte dos bairros de Roma. Eleva a tua Igreja acima
das misérias humanas, consola e abençoa! Ajuda, serve e estende, Urbano, a fraternidade
entre os corações, pois somos todos filhos de Deus e herdeiros do Cristo. Ele, na
verdade, deixou à Igreja a posse dos bens imperecíveis da alma, para que ela
pudesse repartir, sem estipular preço. Repartir sem trocas exageradas, sem
permutas vergonhosas. Parece-nos que neles que julgas inimigos da Igreja e
satanás tem mais respeito pelas coisas santas, porque desconhecem o que
conheces. A iniquidade assola a humanidade, vergasta os povos em todas as
direções, mas o pior é que essa iniquidade se enraíza em Roma, e, se não é
muito dizer, na casa que dizes pertencer ao Apóstolo Pedro, a quem encontrei há
pouco tempo falando aos muçulmanos, no plano espiritual, quando estavam em
sono. Levanta, meu irmão, e vive! Vive para Deus, para a humanidade e para a
tua Igreja, no bem absoluto, onde não existem fronteiras. Levanta, toma o teu
fardo e anda! Começa a amar a Deus sobre todas as coisas - e pelo menos os que
se aproximam de ti - como a ti mesmo. Esta é a lei e os profetas!
O Sumo Pontífice
acorda do longo sono, assustado. Os olhos denunciam pranto ininterrupto, coisa difícil
de notar na sua postura de homem guerreiro e espírito decidido. O sol já
banhava Roma há várias horas.
O texto acima é um diálogo entre João, o Evangelista e o Papa
Urbano II, em desdobramento durante o sono da noite, referente às Cruzadas que já haviam partido em direção ao Oriente.
Do livro: FRANCISCO DE ASSIS - JOÃO
NUNES MAIA (MIRAMEZ)
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