Por falta de acesso a informações no âmbito
social, político e histórico do período da entrada dos conceitos espíritas no
Brasil, no início do século XIX, e por aceitação de obras psicografadas
diversas, sem a devida crítica e submissão ao método do controle universal
elaborado por Kardec, uma parte considerável da comunidade espírita foi
formando e assumindo paulatinamente o conceito de 'religião espírita', sem nem
mesmo entender os motivos extra doutrinários que levaram a isso.
Começamos esse nosso pequeno artigo destacando
um pequeno trecho de O Que é o Espiritismo, elaborado por Allan Kardec, quando
o mesmo tece comentários sobre o 'Terceiro Diálogo - O Padre': "O
Espiritismo era apenas uma simples doutrina filosófica; foi a Igreja quem lhe
deu maiores proporções, apresentando-o como inimigo formidável; foi ela, enfim,
quem o proclamou nova religião. Foi um passo errado, mas a paixão não raciocina
melhor.".
Observando-se o parágrafo acima, claramente percebemos que Kardec nunca tinha visto, até então, o Espiritismo como uma religião. Tal conceito ou atributo lançado à doutrina codificada por Kardec foi, segundo seu entendimento, proposta por seguidores de outras religiões, sendo os católicos os mais interessados naquele momento devido ao seu número de adeptos, que legitimava uma grande influência social e política. Por motivos óbvios tal poder justificava o interesse em denegrir a imagem dessa nova doutrina, comparando-a com seus próprios preceitos, sobretudo quando se tratava da figura de Jesus. Sendo a religião católica a que por 'direito' poderia se intitular como cristã, fazia-se mister 'elevar' o Espiritismo ao patamar de religião para justificar ao mundo sua postura não simplesmente herege, mas sim blasfema, por se intitular como religião cristã.
Observando-se o parágrafo acima, claramente percebemos que Kardec nunca tinha visto, até então, o Espiritismo como uma religião. Tal conceito ou atributo lançado à doutrina codificada por Kardec foi, segundo seu entendimento, proposta por seguidores de outras religiões, sendo os católicos os mais interessados naquele momento devido ao seu número de adeptos, que legitimava uma grande influência social e política. Por motivos óbvios tal poder justificava o interesse em denegrir a imagem dessa nova doutrina, comparando-a com seus próprios preceitos, sobretudo quando se tratava da figura de Jesus. Sendo a religião católica a que por 'direito' poderia se intitular como cristã, fazia-se mister 'elevar' o Espiritismo ao patamar de religião para justificar ao mundo sua postura não simplesmente herege, mas sim blasfema, por se intitular como religião cristã.
Ainda no Terceiro Diálogo, inquirido sobre as
questões dogmáticas inerentes à todas as religiões, Kardec apresenta mais
detalhes sobre os fundamentos da doutrina espírita, em que ela realmente se
pauta, concluindo, sem rodeios, sobre o seu verdadeiro caráter: "O
Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência, não cogita de questões dogmáticas.
Esta ciência tem consequências morais como todas as ciências filosóficas"
(...)
"Mais bem observado depois
que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de
questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é,
pois, o de uma ciência e não de uma religião".
(...)
"Que prova tudo isto? Que
não somos ateus, o que não quer dizer que sejamos professos de religião reformada."
(...)
"Eis por que, sem ser uma
religião, o Espiritismo se prende essencialmente às ideias religiosas,
desenvolve-as naqueles que não as possuem, fortifica-as nos que as têm
incertas."
Interessante observar que a FEB, em nota de
rodapé à antepenúltima citação acima de Kardec, sugere a leitura da revista
Reformador de 1949, pág. 217. Nesse exemplar da referida revista, há
comentários que levam a uma certa confusão na aplicação da palavra religião ao
Espiritismo, sugerindo uma correlação direta entre ambos.
O parágrafo abaixo se encontra em O Evangelho
Segundo o Espiritismo e, mais uma vez, deixa clara a opinião de Kardec sobre o
tema: "O Espiritismo é uma opinião, uma crença; fosse até uma religião,
por que se não teria a liberdade de se dizer espírita, como se tem a de se
dizer católico, protestante, ou judeu, adepto de tal ou qual doutrina
filosófica, de tal ou qual sistema econômico?"
Tal passagem possui a mesma nota da FEB sobre a
Revista Reformador, sendo que sua tradução também não foi muito feliz com
relação à segunda oração. O original em francês "fût-il même une religion
(...)" apresenta o advérbio 'mesmo' que não foi trazido para a versão em
português, e que tornaria a frase assinalada muito mais inteligível ao leitor,
caso fosse escrita como "fosse mesmo uma religião (...)", ou também
"ainda que fosse uma religião (...)". Não há justificativa para a
omissão do advérbio por parte do tradutor no caso acima, a menos que houvesse
uma necessidade premente que o impulsionasse para isso, tal como o interesse em
adequar a tradução ao conteúdo da Revista Reformador já citada, buscando uma
coerência, ou por outra questão de ordem talvez até mais profunda, a
sobrevivência, como sugere o texto a seguir.
Porque mudar a visão de doutrina para religião?
Mas porque esse interesse tão intenso de mudar
a visão de doutrina para religião, destruindo a ideia original de Kardec?
O que ocorre é que, no início do século
passado, havia muita perseguição às casas espíritas, por conta do Código Civil
vigente, que proibia a manifestação de sessões com características de bruxaria,
de maravilhoso, de ilusão. Como os grupos espíritas exerciam trabalhos
mediúnicos, esses eram vistos com maus olhos pelas autoridades, sobretudo
aquelas sob forte influência católica.
Pessoas da alta sociedade e influentes que
estudavam e acreditavam no Espiritismo, tentaram mudar o Código Civil para que
as casas espíritas não sofressem mais represálias, contudo não obtiveram êxito.
Algumas dessas pessoas faziam inclusive parte da FEB. Uma vez derrotadas, elas
decidiram legitimar o funcionamento das instituições espíritas através de
prerrogativas descritas na Constituição Federal, já que o Código Civil não
poderia ir de encontro a ela. Para tanto, bastava que se olhasse para o
Espiritismo não mais como doutrina, mas sim como uma religião, pois era (e é
até hoje) garantido a todo cidadão brasileiro o direito de crer e vivenciar a
religião de seu interesse.
Leia um trecho da tese de doutorado da Dra.
Raquel Marta da Silva (também disponível nesse site): "Buscando novos
discursos, os representantes espíritas perceberam que, a partir desse Código,
ficava explícito uma incompatibilidade entre a condenação ao ‘espiritismo' e a
promoção da liberdade de consciência e de crença que faziam parte da plataforma
republicana que constavam do projeto de Constituição então em avaliação.
Segundo Giumbelli, foi a partir dessa argumentação que o movimento trilhou outro
percurso para atingir sua legitimidade. Ou seja, os espíritas perceberam que
esse caminho devia ser traçado a partir da sustentação da tese de que, acima de
tudo, o espiritismo se caracterizava pelo seu aspecto doutrinário. Portanto,
tratava-se de mostrar que o Código Penal, ao perseguir seus fiéis, estava não
só sendo incoerente com a proposta da Constituição que seria promulgada em
1891, como também, estaria desrespeitando o direito e a liberdade dos cidadãos
brasileiros em escolherem e praticarem suas crenças religiosas. Enfim, a
reivindicação do caráter ‘religioso' da ‘doutrina espírita' representava a
escolha de uma via de legitimação bem fundada. Isto é, não se tratava apenas de
uma forma possível de definir um conjunto de concepções e práticas oportunizadas
pelo seu sistema conceitual, mas de uma interpretação que poderia ser aceita
por aqueles a quem cabia julgá-las.".
Com essa nova iniciativa, ainda que sendo vez
ou outra alvo de ataques, os grupos espíritas daquela época passaram a
conquistar seu espaço. Foi uma grande conquista, apesar do caminho não muito
coerente de renunciar a sua origem e verdadeira pureza filosófico-científica.
Essa medida iniciou uma grande confusão que vemos nos dias de hoje quando se fala
no 'aspecto tríplice' da Doutrina Espírita, que, de fato, não existe.
Acreditamos que tal ação equivocada foi antes inocente, que intencional.
Cabe aqui ressaltar um segundo fato histórico:
os grupos de umbanda, que naquele momento passavam pelos mesmos problemas que o
dos espíritas, sendo perseguidos até mesmo de forma mais ostensiva,
aproveitaram o 'gancho' iniciado pela FEB e passaram a se identificar como
grupos espíritas, terreiros espíritas, etc., apresentando-se como uma espécie
de ramificação da 'religião espírita'. Conseguiram, assim, manter suas
reuniões, apesar de não possuírem qualquer ligação com o Espiritismo. É por
esse motivo que, até hoje, os frequentadores de tais grupos religiosos
identificam-se como espíritas, embora o seu sentido não tenha qualquer ligação
com o sentido original criado por Kardec.
Importa notar, baseado nos comentários acima
citados, que a ideia de Espiritismo religião somente veio à luz no Brasil,
durante o período acima, mas principalmente por questões políticas e jurídicas!
Até então, não se fazia alusão a esta ideia, mesmo porque o próprio codificador
a refutava textualmente, como fica claro nos textos acima citados, bem como na
"Revista Espírita" de dezembro de 1868, no texto intitulado "O
espiritismo é uma religião?": "O espiritismo, não tendo nenhum
dos caracteres duma religião, na acepção usual da palavra, não se poderia, nem
deveria ornar-se de um título sobre o valor do qual, inevitavelmente, seria
desprezado; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e
moral".
Diferença entre Espiritismo e movimento
espírita
Apesar de tudo o que escrevemos acima, como
doutrina filosófica, podemos considerar a possibilidade de o Espiritismo
originar grupos de estudos com pensamentos e ações distintos, que vão variar seus
comportamentos, conceitos e aceitações de acordo com os costumes, o ambiente, o
foco das pesquisas, etc. Nesse aspecto, podemos ver surgir uma silhueta de
religião a se formar instintivamente nas mentes das pessoas, já que qualquer
religião demanda a existência de uma doutrina filosófica.
O inverso, contudo, não é verdade, isto é, nem
toda doutrina filosófica possui estrutura para se edificar uma religião. O
Espiritismo, por força das consequências morais que dele decorrem, possui uma
base de conhecimento suscetível de dar ensejo a alguma religião. Esse talvez
seja o agente que mais traz confusão nas mentes das pessoas, pois é da natureza
humana querer sempre concluir algum pensamento. Mas não é porque o Espiritismo
pode proporcionar o nascimento de uma religião através de sua filosofia, que
ele será a religião em si. A música dos indígenas ou dos terreiros, por
exemplo, possuem estruturas que possibilitam uma melhor concentração e, assim,
facilitam a comunicação mediúnica, mas a música não é a comunicação mediúnica.
Acreditamos que textos de livros como
"Brasil, coração do mundo, Pátria do Evangelho", por serem por demais
saudosistas, enaltecendo o posicionamento religioso das pessoas, acentuam a
fragilidade destas para a percepção dos conceitos originais trazidos por Kardec
sobre esse tema.
Esclarecendo um pouco mais, apreciemos outro
texto de Kardec, ainda na "Revista Espírita" de dezembro de 1868:
"o laço estabelecido por uma religião é um laço essencialmente moral, que
liga os corações, que identifica os pensamentos, [...]. O efeito desse laço
moral é o de estabelecer entre os que ele une, [...] a fraternidade e a
solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. [...] Se assim é, perguntarão
então o espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido
filosófico, o espiritismo é uma religião".
Ora, considerando-se apenas o aspecto
filosófico, religião e Espiritismo se confundem, pois ambos, como diz Kardec,
estabelecem um laço moral entre seus participantes. Mas religião e Espiritismo
não são somente filosofia. Eles possuem outras características que os tornam
diametralmente distintos, ainda que possuam este ponto de contato. Podemos
citar, por exemplo, os dogmas, no primeiro caso e a ciência, no segundo.
Comparando com o comentário anterior, a música e a comunicação mediúnica se
confundem no quesito concentração, pois precisam que este exista, porém guardam
a sua individualidade nos demais aspectos.
Isso fica patente quando vemos, ainda no trecho
de O Que é o Espiritismo, a seguinte citação de Kardec: "A religião
encontra, pois, um apoio nele*, não para as pessoas de vistas estreitas, que a veem
integralmente na doutrina do fogo eterno, na letra mais que no espírito, mas
para aqueles que a veem segundo a grandeza e a majestade de Deus." *
(no Espiritismo).
Observe que Kardec faz questão de anunciar que
um e outro são coisas distintas, mas que a religião pode ter, no Espiritismo, o
apoio para a consolação.
Ou seja, a religião precisa do Espiritismo, mas
o contrário não é verdade. Muitos de nós esquecemos disso e o que temos feito
desde o século passado é conceituar a Doutrina Espírita com as nossas próprias
características sócio filosóficas humanas. Quem é religioso é o movimento
espírita, e não o Espiritismo.
BIBLIOGRAFIA
Dicionário das Religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
Dicionário das Religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
Enciclopédia Combi Visual Enciclopédia Einaudi. Lisboa, Imprensa
Nacional, 1985-1991.
IDÍGORAS, J. L. Vocabulário Teológico para a América Latina. São Paulo,
Edições Paulinas, 1983.
MENDONÇA, E. P. O Socratismo Cristão e as Origens da Metafísica Moderna. São Paulo, Convívio, 1975.
MENDONÇA, E. P. O Socratismo Cristão e as Origens da Metafísica Moderna. São Paulo, Convívio, 1975.
SANTOS, José L. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo:
Moderna, 1997.
SILVA, Raquel. M. Chico Xavier: imaginário e representações simbólicas no interior das Gerais. Uberlândia: UFU, 2002. (Dissertação de Mestrado).
SILVA, Raquel. M. Chico Xavier: imaginário e representações simbólicas no interior das Gerais. Uberlândia: UFU, 2002. (Dissertação de Mestrado).
STOLL, Sandra J. Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil.
São Paulo: USP, 1999. (Tese de Doutorado).
SILVA, Raquel Marta da - A construção do imaginário espírita brasileiro
(Tese de Doutorado)
Nenhum comentário:
Postar um comentário