Francisco, não podendo
falar com o Papa Inocêncio III, enviou-lhe alguns tópicos das regras, nas quais
iria basear a vida de todos os franciscanos, e inspirava-se nas passagens do
Evangelho, para maior segurança do que estava falando ao Homem de Deus e
seus cardeais:
Rogamos a Deus e a Nosso
Senhor Jesus Cristo, que nos abençoe pelas mãos de Vossa Santidade. Seríamos
muito felizes se Deus nos permitisse o diálogo com Vossa Santidade.
Nossa pobre consciência
pede e o nosso coração anseia por tal momento; se a nossa condição espiritual
não o permite, curvamo-nos diante da vossa vontade, com a humildade que a nossa
fraca condição pode expressar. Não seria justo insistir mais do que já o
fizemos, e não pretendemos desgastar a vossa iluminada mente com coisas que, porventura,
achais desnecessárias. Compete-nos ir embora, confiantes em Deus e pedindo a
Jesus que nos guie por caminhos convenientes, favorecendo-nos com as sementes
do Bem, onde elas possam frutificar.
Sabemos que o tempo de
Vossa Santidade é precioso, na vigilância da Igreja que Nosso Senhor Jesus
Cristo dirige por vossas mãos. Não podemos mais teimar; no entanto, queremos
que a vossa iluminada percepção observe que pretendemos basear os princípios da
nossa comunidade onde o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo possa evidenciar-se,
como um tesouro dos Céus entregue às criaturas da Terra, como herança na para a
paz de todos os povos.
Respeitamos muito a nossa
Igreja pelo que ela é e pelo que tem feito em favor da coletividade; todavia,
existem no seio da nossa amada religião desvios que o coração em Cristo não
pode suportar. O ouro acumulado gera guerras e as guerras pedem mais ouro.
Das guerras e do ouro,
gera-se um filho destruidor dos povos, que se chama egoísmo; deste, nascem a
prepotência e a perseguição. E onde fica o Cristo, nesse ente de revolta? E quem
tem coragem de pregar o Evangelho nessa atmosfera de contradições?
Com toda humildade,
pediria a Vossa Santidade e aos eminentes cardeais que vos assistem, que
atentásseis para o que quero expressar nesta carta, e que me perdoeis se eu
estiver errado ou falando o que não devo.
Não sou eu, que nada
tenho para ensinar, principalmente à Vossa Santidade, quem escreve os
ensinamentos que se seguem. São extraídos do Evangelho e servem de base para as
nossas regras, que pretendemos seguir letra por letra:
Nem jamais comemos pão de
graça, à custa de outrem, pelo contrário e labor da fadiga, de noite e dia,
trabalhávamos a fim de não ser pesado nenhum de vós. (II Tes, 3:8).
E continua o Apóstolo:
Não porque não tivéssemos
esse direito, mas por termos em vista oferecer-exemplos em nós mesmos, para nos
imitardes. (II Tes, 3:9).
Porque, quando ainda
convosco, vos ordenamos isto: Se alguém não quer trabalhar, também, não coma. (II Tes, 3:10)
E Mateus nos ajuda no ponto
primordial da questão, assim afirmando capítulo dez, versículos nove e dez:
Não vos proveis de ouro,
nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos. Nem de alforjes para o caminho,
nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão, porque digno é o trabalhador
de seu alimento.
E ainda mais assevera o
Mestre, anotado por Marcos, capítulo no versículo trinta e cinco:
E ele, assentando-se,
chamou os doze e lhes disse: Se alguém quer ser o primeiro, seja o último e servo
de todos.
Estas bases estão fundamentadas
no sacrifício de nós mesmos em favor do Evangelho, na renúncia, na humildade
sem ostentação, no perdão incondicional, no desprendimento sem vaidade, e no
amor que nunca deverá exigir.
Pedimos perdão se, por
negligência nossa, ofendemos a Vossa Santidade e que desculpeis a nossa
pretensão de sermos atendidos. Que Deus e Cristo nos abençoe a todos e que Maria
Santíssima cubra a Igreja com o seu manto de luz. Amém.
O Papa Inocêncio III
estava em reunião com os cardeais que formavam a corte Apostólica Romana. Em
seus dedos brilhavam anéis caríssimos que, junto com suas riquíssimas vestes,
formavam verdadeiro contraste com as dos frades humildes que procuravam o alto
clero católico, para um diálogo livre e sem premeditadas interpretações.
Francisco iria conversar com o máximo dirigente da Igreja, entregando-se completamente
à intuição divina. A carta chegou à Table Sagrada e foi levada à mesa de conferências,
e lida na reunião por ordem do próprio papa.
O cardeal que a leu era
João de São Paulo, homem de reconhecidas cristão que já tinha sentido o Cristo
interno falar-lhe ao coração. Quando começou a leitura, os seus sentidos deram
sinais de que concordava com aquele nem que escrevera, e a vontade de
conhecê-lo subiu-lhe à mente e pensou:
"Esse homem é destemido
e deve estar envolvido por sentimentos altamente superiores, pelo modo como
fala neste pergaminho".
Os outros cardeais
enfureceram-se com a petulância de Francisco. O próprio papa ficou calado,
somente ouvindo as conjecturas dos seus assistentes. Um deles, por sinal o mais
ignorante, deu a entender que o dono daquela missiva deveria parar nos
tribunais pela sua audácia e atrevimento, podendo igualmente ser enquadrado
como herege. E falou:
- O Santo Ofício foi
feito para quê?
O Cardeal João defendeu as
ideias de Francisco, mesmo sem conhecê-lo, com toda segurança, baseando-se no
Evangelho do Divino Mestre, sem temer o ambiente em que se encontrava:
- Peço licença a Vossa
Santidade, para dizer o que sinto há muito tempo, já que não devemos ter
segredos uns com os outros, nesta casa de Deus. Também penso como esse homem
que não conheço. Sinto que a Igreja Católica Apostólica Romana está tomando rumos
que não os indicados por Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo que Ele ensinou e exemplificou
na Sua divina missão, nós estamos fazendo ao contrário. Se pregamos, fazemo-lo
somente para os outros, pois nós mesmos agimos diferente do que falamos. Penso
ser isto hipocrisia da nossa parte. Quero que me respondais, por favor:
Se fosse Jesus quem
estivesse à frente dos destinos da Igreja neste momento, Ele iria apoiar as
Cruzadas? Ele iria abrir tribunais para sacrificar os hereges? Ele iria matar
para defender algum Santo Sepulcro, como por exemplo, o de Moisés? Ele iria
entesourar bens materiais como aconteceu conosco? Ele iria fazer construções
suntuosas, como as que erguemos em todo o mundo? Ele iria dominar consciências
como estamos fazendo, pressionando-as para nos seguir? E faria outras tantas
coisas que não preciso mencionar, porque das citadas podereis deduzir as
outras, com mais capacidade que eu, pois sois homens inteligentes, capazes de
compreender o certo e o errado?
Rogo a Vossa Santidade
que me perdoeis, se falei alguma coisa contrária as regras da Igreja, mas sinto
vontade de falar a verdade, para que esta não me estrague as horas de repouso, através
da minha consciência.
Acho que esse homem deve
ser ouvido, e se Vossa Santidade o permitisse desejaria estar ao vosso lado, no
dia em que se der esse encontro.
Quase todos se colocaram
contra a opinião do Cardeal João e contra a ideia da entrevista de Inocêncio III
com Francisco de Assis. A decisão final foi do próprio papa, que também a achou
inconveniente, por ter outros trabalhos de maior interesse da Igreja. Um dos
mais radicais redigiu uma resposta a Francisco informando a decisão de Sua Santidade,
já que o Cardeal João de São Paulo' recusou-se a fazê-lo.
Francisco de Assis, que
mandara buscar a resposta, a leu pausadamente sem mudar de feição, sem dar
demonstração de constrangimento. Reuniu seus discípulos e passou a carta do
papa para todos entenderem o que fazer: ir embora e trabalhar do modo que a inspiração
dos Céus achasse conveniente. E partiram na manhã seguinte.
Do livro: FRANCISCO DE ASSIS - JOÃO
NUNES MAIA (MIRAMEZ)
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