segunda-feira, 18 de novembro de 2013

TÓPICOS DAS REGRAS FRANCISCANAS ENVIADAS AO PAPA INOCÊNCIO III

Francisco, não podendo falar com o Papa Inocêncio III, enviou-lhe alguns tópicos das regras, nas quais iria basear a vida de todos os franciscanos, e inspirava-se nas passagens do Evangelho, para maior segurança do que estava falando ao Homem de Deus e seus cardeais:

Rogamos a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoe pelas mãos de Vossa Santidade. Seríamos muito felizes se Deus nos permitisse o diálogo com Vossa Santidade.

Nossa pobre consciência pede e o nosso coração anseia por tal momento; se a nossa condição espiritual não o permite, curvamo-nos diante da vossa vontade, com a humildade que a nossa fraca condição pode expressar. Não seria justo insistir mais do que já o fizemos, e não pretendemos desgastar a vossa iluminada mente com coisas que, porventura, achais desnecessárias. Compete-nos ir embora, confiantes em Deus e pedindo a Jesus que nos guie por caminhos convenientes, favorecendo-nos com as sementes do Bem, onde elas possam frutificar.

Sabemos que o tempo de Vossa Santidade é precioso, na vigilância da Igreja que Nosso Senhor Jesus Cristo dirige por vossas mãos. Não podemos mais teimar; no entanto, queremos que a vossa iluminada percepção observe que pretendemos basear os princípios da nossa comunidade onde o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo possa evidenciar-se, como um tesouro dos Céus entregue às criaturas da Terra, como herança na para a paz de todos os povos.

Respeitamos muito a nossa Igreja pelo que ela é e pelo que tem feito em favor da coletividade; todavia, existem no seio da nossa amada religião desvios que o coração em Cristo não pode suportar. O ouro acumulado gera guerras e as guerras pedem mais ouro.

Das guerras e do ouro, gera-se um filho destruidor dos povos, que se chama egoísmo; deste, nascem a prepotência e a perseguição. E onde fica o Cristo, nesse ente de revolta? E quem tem coragem de pregar o Evangelho nessa atmosfera de contradições?

Com toda humildade, pediria a Vossa Santidade e aos eminentes cardeais que vos assistem, que atentásseis para o que quero expressar nesta carta, e que me perdoeis se eu estiver errado ou falando o que não devo.

Não sou eu, que nada tenho para ensinar, principalmente à Vossa Santidade, quem escreve os ensinamentos que se seguem. São extraídos do Evangelho e servem de base para as nossas regras, que pretendemos seguir letra por letra:

Nem jamais comemos pão de graça, à custa de outrem, pelo contrário e labor da fadiga, de noite e dia, trabalhávamos a fim de não ser pesado nenhum de vós. (II Tes, 3:8).

E continua o Apóstolo:

Não porque não tivéssemos esse direito, mas por termos em vista oferecer-exemplos em nós mesmos, para nos imitardes. (II Tes, 3:9).

Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: Se alguém não quer trabalhar, também, não coma. (II Tes, 3:10)

E Mateus nos ajuda no ponto primordial da questão, assim afirmando capítulo dez, versículos nove e dez:

Não vos proveis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos. Nem de alforjes para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão, porque digno é o trabalhador de seu alimento.

E ainda mais assevera o Mestre, anotado por Marcos, capítulo no versículo trinta e cinco:

E ele, assentando-se, chamou os doze e lhes disse: Se alguém quer ser o primeiro, seja o último e servo de todos.

Estas bases estão fundamentadas no sacrifício de nós mesmos em favor do Evangelho, na renúncia, na humildade sem ostentação, no perdão incondicional, no desprendimento sem vaidade, e no amor que nunca deverá exigir.

Pedimos perdão se, por negligência nossa, ofendemos a Vossa Santidade e que desculpeis a nossa pretensão de sermos atendidos. Que Deus e Cristo nos abençoe a todos e que Maria Santíssima cubra a Igreja com o seu manto de luz. Amém.

O Papa Inocêncio III estava em reunião com os cardeais que formavam a corte Apostólica Romana. Em seus dedos brilhavam anéis caríssimos que, junto com suas riquíssimas vestes, formavam verdadeiro contraste com as dos frades humildes que procuravam o alto clero católico, para um diálogo livre e sem premeditadas interpretações. Francisco iria conversar com o máximo dirigente da Igreja, entregando-se completamente à intuição divina. A carta chegou à Table Sagrada e foi levada à mesa de conferências, e lida na reunião por ordem do próprio papa.

O cardeal que a leu era João de São Paulo, homem de reconhecidas cristão que já tinha sentido o Cristo interno falar-lhe ao coração. Quando começou a leitura, os seus sentidos deram sinais de que concordava com aquele nem que escrevera, e a vontade de conhecê-lo subiu-lhe à mente e pensou:

"Esse homem é destemido e deve estar envolvido por sentimentos altamente superiores, pelo modo como fala neste pergaminho".

Os outros cardeais enfureceram-se com a petulância de Francisco. O próprio papa ficou calado, somente ouvindo as conjecturas dos seus assistentes. Um deles, por sinal o mais ignorante, deu a entender que o dono daquela missiva deveria parar nos tribunais pela sua audácia e atrevimento, podendo igualmente ser enquadrado como herege. E falou:

- O Santo Ofício foi feito para quê?

O Cardeal João defendeu as ideias de Francisco, mesmo sem conhecê-lo, com toda segurança, baseando-se no Evangelho do Divino Mestre, sem temer o ambiente em que se encontrava:

- Peço licença a Vossa Santidade, para dizer o que sinto há muito tempo, já que não devemos ter segredos uns com os outros, nesta casa de Deus. Também penso como esse homem que não conheço. Sinto que a Igreja Católica Apostólica Romana está tomando rumos que não os indicados por Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo que Ele ensinou e exemplificou na Sua divina missão, nós estamos fazendo ao contrário. Se pregamos, fazemo-lo somente para os outros, pois nós mesmos agimos diferente do que falamos. Penso ser isto hipocrisia da nossa parte. Quero que me respondais, por favor:

Se fosse Jesus quem estivesse à frente dos destinos da Igreja neste momento, Ele iria apoiar as Cruzadas? Ele iria abrir tribunais para sacrificar os hereges? Ele iria matar para defender algum Santo Sepulcro, como por exemplo, o de Moisés? Ele iria entesourar bens materiais como aconteceu conosco? Ele iria fazer construções suntuosas, como as que erguemos em todo o mundo? Ele iria dominar consciências como estamos fazendo, pressionando-as para nos seguir? E faria outras tantas coisas que não preciso mencionar, porque das citadas podereis deduzir as outras, com mais capacidade que eu, pois sois homens inteligentes, capazes de compreender o certo e o errado?

Rogo a Vossa Santidade que me perdoeis, se falei alguma coisa contrária as regras da Igreja, mas sinto vontade de falar a verdade, para que esta não me estrague as horas de repouso, através da minha consciência.

Acho que esse homem deve ser ouvido, e se Vossa Santidade o permitisse desejaria estar ao vosso lado, no dia em que se der esse encontro.

Quase todos se colocaram contra a opinião do Cardeal João e contra a ideia da entrevista de Inocêncio III com Francisco de Assis. A decisão final foi do próprio papa, que também a achou inconveniente, por ter outros trabalhos de maior interesse da Igreja. Um dos mais radicais redigiu uma resposta a Francisco informando a decisão de Sua Santidade, já que o Cardeal João de São Paulo' recusou-se a fazê-lo.

Francisco de Assis, que mandara buscar a resposta, a leu pausadamente sem mudar de feição, sem dar demonstração de constrangimento. Reuniu seus discípulos e passou a carta do papa para todos entenderem o que fazer: ir embora e trabalhar do modo que a inspiração dos Céus achasse conveniente. E partiram na manhã seguinte.


Do livro: FRANCISCO DE ASSIS - JOÃO NUNES MAIA (MIRAMEZ)

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