A partilha resume os 90 anos do padre francês Henri Le Boursicaud. Fundador do Emaús Liberté, o redentorista escolheu Fortaleza para aquietar o corpo que rodou o mundo e agora pede descanso.
A casa de frente para a praia das Goiabeiras onde mora o responsável pelo Emaús no Ceará, Airton Barreto, é simples, mas aconchegante. No meio da tarde, somente o barulho dos adolescentes jogando bola é capaz de quebrar a monotonia do silvo gerado pela brisa do mar. O local acordado para a entrevista com o padre francês Henri Le Boursicaud, apesar de ser considerado um dos mais violentos de Fortaleza, transmite a gostosa sensação de tranquilidade a quem já se acostumou na lida diária com a esquizofrenia de uma cidade que não mais lhe cabe dentro.
Enquanto é aguardada a chegada para a entrevista do fundador da primeira Comunidade Emaús – Liberdade no mundo, o anfitrião Airton Barreto vai tecendo loas ao francês Henri Le Boursicaud. Não sem o receio da conversa não render, pois o padre, já com 90 anos, encontra-se fraquinho e se cansa fácil. As condições físicas de hoje fazem com que Barreto lamente a pouca atenção dada pela imprensa ao homem que considera ser a coerência
Henri
No Brasil, a primeira experiência de partilha se deu com catadores de papelão
O relato rápido de Barreto sobre as experiências vividas pelo padre Henri o faz aumentar a voz por um instante, para dizer que o repórter precisaria ter o conhecido quando estava no auge do seu vigor físico.
A chegada a passos lentos e difíceis do padre francês, ajudado por um amigo, interrompe a conversa com Airton Barreto. A apresentação é feita pelo anfitrião sem salamaleques. Trata-se de um jornalista que quer conversar um pouco com o senhor sobre sua vida, diz Barreto.
Ele para por um instante, levanta a cabeça, e diz: “Um grande teólogo disse um dia que se pudesse recomeçar a vida não escolheria o trabalho de teologia. Seria jornalista. Isso é para dizer da importância de vosso trabalho...”
O POVO – Quem é o padre Henri?
Henri Le Boursicaud - Sou um missionário redentorista que chegou a uma determinada altura de sua vida e achou que devia se introduzir na vida operária na França com os emigrantes portugueses que viviam na comunidade Champigny. Havia seis mil portugueses vivendo nas barracas onde tinham apenas três torneiras com água e não havia coletores de lixo. Então resolvi com mais dois redentoristas viver no meio deles.
OP – Isso foi quando?
Padre Henri – Nos anos 60, quando houve a grande emigração portuguesa para a França, sobretudo
OP – O senhor é um andarilho.
Padre Henri – Visitei muitos países. Desde os europeus, Alemanha, Tchecoslováquia, Irlanda do Norte, Portugal, aos africanos. Cabo Verde, Madagascar, Camarões, Congo, Haiti, entre outros. São países onde procurei levar um pouco do meu trabalho. Do Haiti, quando retornei a França, levava uma pneumonia, problemas de próstata, assim como uma hérnia. E uma barba
grande. Porque no Haiti não tinha água para beber. Então, como é que eu vou gastar água para fazer a barba? Em Portugal publiquei vários livros. Alguns deles não estão nem publicados em Francês, mas
OP – O senhor está aqui desde agosto de 2010. Por que retornou?
Padre Henri – Cheguei aqui pela primeira vez com a passagem que uma portuguesa me deu lá. Quando cheguei aqui no Brasil fiquei primeiramente no Convento dos Redentoristas (
OP – O que é a justiça?
Padre Henri – A justiça para mim é a partilha. A partilha foi o gesto de Jesus de Nazaré ao partilhar o pão. No Brasil há ricaços numerosos e pobres na miséria. É um país de riquezas extraordinárias, mas é preciso fazer a justiça, que é a partilha. Alguém pode dizer, como há alguns anos atrás, que falar em justiça dessa forma no Brasil pode ser perigoso, mas as coisas mudaram muito por aqui e me sinto como se estivesse na minha terra pela última vez.
OP – O senhor costuma dizer em relação a esse tema que há duas correntes no mundo.
Padre Henri - Eu gosto muito de dizer que primeiramente somos únicos. Podemos dizer que somos um ser único. Deus não se repete. Na minha experiência, posso dizer que no mundo há habitantes que se dividem em dois caminhos. Uns no caminho do amor e da justiça, com o perigo imenso de encontrarem a morte, como em anos atrás, e muitos no caminho do poder e dinheiro. No primeiro caminho há uma única porta, que é fazer aliança com os pobres. Não podemos entrar nesse caminho sem essa aliança com os pobres.
OP – O que o levou a desenvolver esse conceito de justiça?
Padre Henri – A minha família era de camponeses pobres, mas nunca tive fome. A minha educação não foi com palavras, mas com amor. Eu percebi o amor. Tinha um pai muito bom. Através dos meus pais e de meus irmãos tive a presença do amor e isso e vi o mundo dessa forma.
OP – A pobreza o fez um homem melhor ou mais indignado?
Padre Henri – É verdade que isso me permitiu aprender nessas viagens. Mas cada vez mais firmei minha convicção sobre a necessidade da partilha. Penso que a guerra mundial não vai mais acontecer, nunca mais. O que vai acontecer é a guerra entre os pobres e os ricos em cada país. Até mesmo os que tem muita segurança hoje vão tremer daqui a pouco tempo. Porque a guerra entre os ricos e os pobres vai acontecer. Não estou aqui defendendo que os ricos sejam castigados, mas é assim que vai acontecer.
OP – A percepção que o senhor tem do mundo o fez um homem feliz ou mais
negativo?
Padre Henri – Sou feliz na minha luta. E agora estou aqui com meu irmão José Airton (Barreto), sua família, as crianças... É a minha família. Mas ao mesmo tempo, como posso ser completamente feliz se meus irmãos estão morrendo de fome e são infelizes?
OP – O senhor conheceu Madagascar, morou com os Pigmeus, viveu no Pirambu morando em casa de papelão, sofrendo violência, fome. Aos 90 anos, que avaliação faz da sua vida?
Padre Henri – Penso que ao viajar, como viajei, sempre com um espírito de luta pela justiça, não poderia dizer que não valeu pena. Mas ao ver tanta miséria no mundo, em tantos países, não posso também ficar tranquilo. Não possuo mais tantas forças e agora o que me resta é viver meus últimos dias por aqui.
OP – É possível conciliar progresso com o sentimento de justiça?
Padre Henri – Ser contra o progresso seria horrível. Mas penso que temos que progredirmos juntos. Eu não estou contra o progresso.
OP – O que é pobreza? É a ausência de bens ou a falta de disposição para partilhar?
Padre Henri – Penso que ao dizer que estou contra a riqueza, seria mal entendido, porque estou de acordo com mais riqueza. Mas para todos. Porque é preciso dividir isso. Todos somos irmãos. O Brasil é uma grande família, mas temos aqui mesmo no Vila Velha crianças morando na lama. E esse país poderia ser um grande exemplo de partilha. A pobreza, todavia, não é somente a falta de bens.
OP – E a definição de Deus?
Padre Henri – As pessoas pensam que Deus é algo exterior. Onde está talvez no sacrário (risos)? Não, está em cada de nós quando toma consciência dessa realidade de injustiça.
OP – O senhor se considera um padre diferente?
Padre Henri - O que aconteceu, é que passei da fé
OP – Como a Igreja está diante dessa realidade da partilha?
Padre Henri - Penso que é preciso começar a pressionar o Vaticano. É por isso que fiz a caminhada com 75 anos de Paris à Roma para fazer uma pergunta ao papa...
OP – É verdade que o senhor levou um tapa de um padre por conta de suas opiniões?
Padre Henri – (Risos) Tinha 60 anos, mais ou menos. Era um domingo, em Portugal, e depois de ter saído de uma igreja fui ao encontro do pároco. Fiquei de pé e não sei por que, eu disse: não é difícil encontrar a casa de um padre, porque geralmente é a mais bela, a mais rica do lugar. Ai um padre se levantou e me deu um tapa na cara.
OP – E o futuro da Igreja?
Padre Henri – O Vaticano vai desaparecer. A igreja será uma grande comunidade de comunidades. Comunidade católica, comunidade de protestantes, diversas comunidades.
OP – Padre o senhor poderia falar um pouco sobre o Emaús Liberté?
Padre Henri - O Abbé Pierre fundou o movimento Emaús. E eu vivi durante 15 anos a
OP – Quando o senhor se refere a luta, quais os limites permitidos na utilização dos meios para alcançar os fins?
Padre Henri – Não gosto que ninguém seja ferido. Mas a luta contra as causas da miséria pode muitas vezes conduzir a um martírio. A luta contra a mudança do sistema é mais difícil do que transformar a sociedade em uma sociedade de ricos e de miseráveis...
OP - O senhor chega aos 90 anos e pelo que sei vive apenas com duas peças de roupa e um par de sapatos...
Padre Henri – Tenho o necessário na casa de meu amigo José Airton. Já tenho muito. É preciso partilhar. Aos 90 anos, não espero nada. Não mereço nada além do que tenho. Desejo que as pessoas sejam felizes, mas como ser feliz sem que os outros sejam também? Não é possível. Então, estou pensando no momento em que vai acontecer quando sair da terra.
Luiz Henrique Campos
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