sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A festa de Páscoa

A festa de Páscoa devia ter lugar, nesse ano, nos últimos dias de março e primeiro de abril (exprimo-me de modo a ser entendido). Quis, como era costume, ir a Jerusalém; porém, não ignorava que a ordem de prender-me seria expedida e que o decreto de morte já tinha sido pronunciado.
Nicodemos, José de Arimatéia e seus amigos, em número de quatorze, haviam-se abstido de qualquer deliberação, não querendo comprometer os meios de servirem-me nos últimos momentos, de salvarem-me talvez. Depois de terem-se esforçado em fazer mudar as disposições do povo a meu respeito, eles recorreram a Pôncio Pilatos, que lhes deu esperanças.
Os dezesseis foram substituídos e ao tribunal reuniram-se dez membros suplentes. Todos condenaram a Jesus como impostor, sedutor, aliado do espírito das trevas.
No domingo, vinte e sete de março, teve lugar nossa partida de Betânia.
Não é verdade que eu estivesse montado em um jumento, porém é certo que me foi proposto, recusando eu o oferecimento. Muitos se apinhavam a meu redor. Ramos com folhas e flores caíam aos meus pés, e o povo de Jerusalém unia-se ao povo nômade para cumular-me de entusiastas demonstrações. O povo é sempre imitador e instrumento. Reproduz-se com seus instintos atávicos e obedece a interesses que não são os seus. Por momentos escravo embrutecido ou déspota insensato, o povo conhecerá a verdadeira força somente mediante os benefícios da educação moral. A educação moral encandeia os instintos e desenvolve a razão.
Uma das primeiras pessoas que reconheci no meio da multidão, que vinha ao nosso encontro dos arredores da cidade, foi meu irmão Eleazar.
Este dia converteu-se depois para mim numa responsabilidade gravíssima. O povo que se havia demonstrado entusiasmado por minhas últimas honras, acusou-me depois, perante Pôncio Pilatos...
Na tarde de domingo (27 de março) combinamos passar a noite em Jerusalém. No dia seguinte me vi assediado para que deixasse aquelas paragens para sempre; permaneci imperturbável e essa espécie de delírio que precipitava minhas palavras, passou mais tarde como profecia.
Prometi a Marcos chamá-lo o mais depressa possível ao reino de meu Pai...
Meus discípulos de Galiléia juravam todos que me rodeariam e me defenderiam até derramar a última gota de seu sangue. Acolhi estas manifestações com um melancólico sorriso e nada respondi. Depois, dirigindo-me a minha mãe, disse-lhe:
“Tu tens entre os companheiros de teu filho, minha mãe, um filho e um irmão que te recordarão o ausente e viverás para que não seja negada minha ressureição como espírito...”.
De meus discípulos da Galiléia, Judas foi o único que não me acompanhou a Gestsemani, na manhã de segunda-feira. Alcançou-nos à tarde e sua atitude chamou a atenção de Pedro, que me disse: “Que tem, pois, Judas? Olhai-o quão preocupado está”.
Aproximei-me dele e perguntei-lhe por que nos havia deixado no momento de nossa partida de Jerusalém.
“Tinha ainda que visitar algumas pessoas, disse-me, e por outra parte eu tinha desejos de me informar das últimas disposições tomadas a nosso respeito. Elas são de tal natureza que nos tiram toda a esperança de poder fugir à vingança dos nossos inimigos.”
“Tu não deves estar triste por uma solução que eu tenho procurado, disse eu. Mostra-te animado no momento do perigo e guarda a lembrança do Mestre quando já não me encontre convosco.”
Estendi a Judas a mão, que ele apertou fracamente; seu olhar esquivou-se de mim. Entendi...
O lava-pés era uma das instituições de João; uma demonstração da igualdade humana. O senhor é o irmão do seu servo. A posição social deixa de existir quando se trata de adorar a Deus.
... O afeto de meus discípulos de Galiléia era sincero; mas duvidei, com razão, de sua firmeza.
“Pedi os tesouros de Deus e desprezai as riquezas da Terra. Quem pretenda elevar-se entre os homens, será humilhado diante de Deus.”
“Não devolvais jamais mal por mal, mas forçai a vossos inimigos que vos respeitem.”
“Vós sois meus apóstolos e meus discípulos; eu terei que contar convosco e não obstante... eu sei desde já que muitos de vós me atraiçoarão.”
Encontrava-me à mesa, rodeado pelos doze; meu tio Tiago formava o décimo terceiro e estava para partir o pão e começarmos a refeição. Meus apóstolos levantaram bruscamente:
“Senhor! Senhor! – prorromperam. – Por que nos causas esta tortura? – Por que chamar-nos traidores, depois de haver-nos confiado o êxito de tua obra?”
“Os que me atraiçoarem por fraqueza, respondi eu, se arrependerão; somente o que tenha me atraiçoado por vingança, sucumbirá sob o peso de seu delito”.
Judas mantinha os olhos baixos, porém ninguém prestou atenção além de mim. Judas, que se encontrava a minha direita, serviu-se em primeiro lugar. João, colocado a minha esquerda, como sempre, inclinou-se para mim e disse: “Em qual de nós pensaste tu, ao falar de traição?”.
Respondi a João:
“O que me atraiçoará ocupa neste momento um lugar de honra, porém, outros também me atraiçoarão mais tarde e muitos me abandonarão covardemente ao longo do caminho do sacrifício.”
Continuei servindo os meus apóstolos e insisti para que me deixassem nessa tarefa. Pedro, a minha frente, estava distraído; não comia nem bebia; dirigi-lhe estas palavras:
“Tu já não és o pescador de peixes, amigo meu, estás aqui convertido em pescador de homens. Tuas redes serão agora argumentos e recolherás em tua barca aos pobres náufragos...”.
Era meia-noite quando enxugamos os pés de meus apóstolos. Digo enxugamos porque meu tio Tiago, cuja ternura por se associava a um profundo sentimento de devoção prática, me ajudava todas as vezes que devia manifestar com uma tarefa pessoal, o culto de uma ideia religiosa. Nesta ocasião suplicou-me que lhe cedesse a maior parte do sacerdócio; é a palavra que empregou.
“Vós sois minha carne, sois meu sangue, dizia eu, meu espírito está em vós e todas as potências da Terra não conseguirão predominar sobre o vosso poder, que será universal”.
Irmãos meus, o sentido destas palavras: Vós sois minha carne, meu sangue, meu espírito, o sentido destas palavras, repetidas muitas vezes durante meus últimos dias, foi tergiversado, com o fim de erigir um dogma ímpio e ao mesmo tempo falho de razão.
“Fazei todas as cousas em meu nome, obrai como se me encontrasse visivelmente entre vós”, são formas que eu empregava com frequência, para dar à presença de meu espírito a autoridade da lembrança de minha vontade imutável...
Manifestei a Judas meu desejo de percorrer com ele o caminho até o jardim de Getsenami e apoiei-me em seu braço. Falamos de cousas inteiramente secundárias, durante quase quarenta minutos de caminhada, depois sentei-me à sombra de uma figueira e meus apóstolos tomaram assento sobre diversos montões de pedras. Judas afastou-se de mim; eu havia previsto isso.
Levantei-me depois de alguns instantes de descanso, chamando Judas meu companheiro de jornada. Foi chamado inutilmente.
Então pronunciei palavras de acusação que não podiam ser alteradas por nenhuma dúvida, dada a sua clareza.
“Aquele que vós chamais está aqui perto, ele está para chegar. Quando o vejais, a vítima será entregue ao verdugo.”
Os gritos, as imprecações de meus apóstolos ouviram-se ao mesmo tempo que chegava até nós o ruído do passo pesado de muitos homens, Judas não apareceu; tinha-lhe faltado a audácia do delito no último momento.
Os soldados, com divisas romanas, eram em número de oito; dois familiares do Santo Ofício os acompanhavam; estes últimos apontaram-me à tropa armada e um soldado deitou-me as mãos. Pedro agrediu este homem; eu me apressei em repreender a meu apóstolo com estas palavras:
“Acalma-te, amigo meu, a resistência é inútil. Sem curvar a cabeça como culpados, convém saber sofrer a lei humana com resignação”.
João enlaçou-me com os braços, meu tio Tiago implorava a Deus, de joelhos e meu irmão deitou a correr em direção a Jerusalém. Todos os outros pareciam presa do terror. Mateus, Tomé, Alfeu, Tiago, o irmão de João, acompanharam-me até a casa do Sumo-Sacerdote Caifás; Lebeu, Felipe, Judo, Simão, irmão de Pedro, voltaram a Getsenami. Depois de minha morte foram juntar-se com os que estavam escondidos em Jerusalém.
Fizeram sentar meus discípulos em um banco do pátio e a mim introduziram-me em uma espaçosa sala, onde se encontravam reunidos Caifás, o Sumo sacerdote Anás, genro de Caifás, e uma delegação do Sinedrim composta de vinte membros. O Sumo-Sacerdote procedeu imediatamente ao meu interrogatório.
Meu tio Tiago renovou diante de todos o juramento de antes morrer que renegar sua aliança comigo. Arrastados por este ato de coragem e lealdade, Marcos, Alfeu e Tomé assentiram que eram meus discípulos e acrescentaram que não me abandonariam.
Expliquei a Pôncio minhas inspirações de criança, meus estudos de homem, minhas alianças, minhas esperanças de espírito na luz infinita; fiz-lhe, a grandes traços, um extrato de minha doutrina, das relações entre os mundos e os espíritos, e apresentei a morte ignominiosa, que me esperava, como o glorioso coroamento de minhas honras como Messias.
“E se eu consegui salvar-vos?” – interrompeu Pôncio.
“Não o intentes, respondi-lhe eu, tu mesmo te verias arrastado pelo furacão popular... escuta...”.
Pôncio sorriu desprezivelmente. “Consente em viver retirado, disse, ganharei tempo e empregarei a força.”
“Por outra parte, acrescentou Pôncio, tive um sonho a noite passada a teu respeito e sinto que uma pesada responsabilidade me pertence no presente e para o porvir.”
“Esses sacerdotes que querem a tua perdição me desprezarão por haver tido medo deles; este povo se arrependerá e a posteridade me acusará, quando menos, de fraqueza.”
“A posteridade, exclamei, saberá que tu me ofereceste a vida e que eu quis morrer.”
“Para mim, a morte é uma auréola; para mim a vida seria uma deserção, uma covardia, uma queda irreparável.”
Levantei-me indicando assim eu mesmo o fim da entrevista, e acrescentei:
“Da casa de meu Pai, na qual estou para entrar, te abençoarei, porque compreendeste a verdade e a defendeste com coragem.”
Muitos me bateram, um cuspiu-me no rosto.
Ao cabo de duas horas de diversões abjetas e cruéis me despiram de minhas vestes e sobre o meu corpo, completamente nu, aplicou-se a tortura da flagelação. Duas lágrimas me queimaram as faces. Foram as últimas.
Era meio-dia quando cheguei ao Gólgota.
Minhas forças estavam exaustas e não me haviam permitido levar o instrumento de meu suplício, que era um tronco de árvore, dividido e ajustado em forma de cruz, e eu mal podia suster-me em pé, quando meu corpo desnudo foi exposto as zombarias mais ignóbeis da mais asquerosa plebe.
Divisando minhas santas companheiras e minha mãe protegida e amparada no meio delas, Tiago, o digno irmão da heroica Maria, Marcos, Pedro, os dois filhos de Salomé, abençoei os arrependidos e, mais do que nunca, acreditei na inquebrantável fidelidade futura de todos.
Dois delinquentes sofriam ao meu lado o mesmo suplício; porém, contrariamente ao que se dizem, eles não me insultaram.
Meus olhos se nublaram: uma opressão mais violenta que as outras me confundiu e adormeci nas trevas humanas para despertar no seio das luminosidades divinas.
Eram mais ou menos três horas.
Do livro: VIDA DE JESUS DITADA POR ELE MESMO – Páginas 290 a 312

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